sexta-feira, 7 de outubro de 2011

O Besingulo

"Longe do Mundo" - Sara Tavares (Corcunda de Notre Dame)


Quando se é pequeno as coisas parecem maiores, as pessoas parecem mais velhas e as palavras têm por vezes significados misteriosos e incompreensíveis.
        

Lembro-me de uma ameaça muito particular da minha irmã.

Quando estava farta dos barulhinhos, das brincadeiras, dos empurrões, das pegas, das lutas, dos arrufos que frequentemente aconteciam entre mim e os meus sobrinhos, agigantava-se sobre nós, mostrava-se grande, enorme, capaz de ter aí dois metros de altura e disparava dos olhos muito abertos uma ameaça aterradora:

— Eu até besingulo!

E aquele nome - "besingulo" - ecoava dentro da minha imaginação como nome de bicho. Um animal qualquer de garras e dentes afiados, coberto de pelo cheio de choquelhas, a cheirar a podre e olhos raiados de vermelho que corria atrás de mim, pronto a agarrar-me e a arrancar-me bocados de carne e sangue.

Outras vezes parecia-me ser um velho gigante, de dentes amarelos e podres, com mãos grandes, calejadas e unhas compridas e sujas, que seria capaz de me agarrar, de me apertar e quase esganar de uma só vez.

Não sabia com rigor o que era um besingulo, mas se não fosse um bicho ou um gigante, era, de certeza, um monstro ou um réptil que de pele escamosa e verde, coberta de baba peganhosa e elástica me envolvia e me devorava de uma só dentada.

A brincadeira ou a pega parava e eu olhava discretamente para trás à procura do besingulo! O Marco e a Paula paravam. Era sinal que também eles estavam receosos de serem possuídos pelo terrífico ente que controlava a nossa infância.

Maldito besingulo!

Vim a descobrir mais tarde o que era o assustador “besingulo”.

Certo dia a minha irmã passou por nossa casa e, no meio de risos brilhantes, contou à minha mãe:

— Fartei-me de rir, hoje. Um dos miúdos – a minha irmã foi professora – chegou ao pé de mim e perguntou-me: “Ó minha senhora, o que é um besingulo?”. Primeiro não percebi, mas só depois compreendi que ele se referia a uma expressão que uso quando os quero ameaçar: “até vos engulo!”.

A minha mãe riu-se e partilhou com a filha o cómico daqueles miúdos ingénuos que tinham ouvido uma ameaça terrível onde só havia uma expressão hiperbólica. E divertidas, riam-se, imaginavam os sustos sentidos pelos gaiatos.

Eu afastei-me sem nada de importante para dizer.

Na outra sala sorri ligeiramente. Não por achar divertido a confusão dos miúdos, mas porque acabara de matar um monstro da minha infância.

A partir desse dia, a minha irmã nunca mais mediu dois metros…

José Paulo Vasconcelos
Maio de 2008

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