sexta-feira, 16 de julho de 2010

Código 715

"With Or Without You" - U2 / Scala & Kolacny




A manhã estava brilhante.
A luz violenta do sol investia contra as paredes claras e transformava as cores esbatidas em clarões indistintos. Ainda não estava calor, mas a manhã prometia uma tarde de longo entorpecimento.
Entrara na sala às nove menos um quarto – já lá ia mais de uma hora.

Para trás, naquela manhã, tinham ficado os sorrisos nervosos, as verificações repetidas das pilhas da calculadora, o nó dado no estômago, os votos protocolares de “boa sorte”…
Para trás, naquela manhã, tinham ficado já sete perguntas e seis respostas sobre Física e Química, equações, contas, fórmulas e outras coisas de que já ninguém se lembra!

Foi no momento em que Carlos se preparava para responder a uma importantíssima questão sobre a força gravitacional da Terra na sua relação com a massa e velocidade de um objecto em desaceleração, tudo acompanhado por um gráfico e uma tabela de duas entradas, que levantou os olhos da folha de respostas e os espraiou pelo infinito dos sete metros que tinha à frente.
E foi nesse mover de olhos, à procura de um breve momento de pausa das interacções das forças físicas, que tropeçou naqueles longos cabelos negros que, imóveis, reflectiam, como ele, no poder das massas e das energias.

Já por outras vezes – nas aulas, nos intervalos, nos corredores – Carlos olhara para aqueles cabelos: pretos, ligeiramente ondulados, brilhantes, longos. Sobretudo longos. De um tamanho imenso, incomensurável, sem limites visíveis! Seria impossível apanhá-los em “rabo de cavalo”, contê-los em trança, prendê-los com ganchos ou arrumá-los com travessões. Aqueles eram cabelos indomáveis. Não seriam rebeldes e não eram, por certo, incontroláveis. Eram apenas inconfináveis.

Debaixo deles, e como eles, estava a Ana.

Quantas vezes Carlos a olhara com os olhos de menino que contempla, na montra, o carro amarelo telecomandado que sabe nunca poderá vir a ter. (Os miúdos pequenos têm coisas destas: são capazes de se deslumbrar vezes infinitas perante o impossível, na crença ingénua de que o impossível se tornará, um dia, possível.)
Carlos já ficara muitas vezes a aguar por aquela miúda. Sabia-lhe o nome e decorara-lhe os olhos e os lábios. Um dia, sem querer, na fila do bar, tocara-lhe, ao de leve, na mão direita.

Mas foram os cabelos que, desde sempre, o enredaram…

Ela pousou a esferográfica, encaminhou uma madeixa por cima do ombro, levantou ligeiramente o braço direito e pediu outra folha. E chegou a Carlos o perfume ligeiro a coco e madeira, com promessas de areias e mares tropicais. Ele olhou. E viu, à contraluz de uma janela de onde jorravam cascatas de sol, o brilho aveludado e cheiroso daqueles cabelos, o perfil exacto e perfeito do rosto, a linha recurvada da nudez incauta de uma orelha aguardando uma jura.

Levantou-se.

Chegou-se a Ana e afogou a mão nos cabelos dela. Abrindo os dedos, penteou-a do pescoço à nuca, deixando escorrer os cabelos pelos vales das mãos.

Os professores vigilantes, exaltados, nervosos e muito preocupados, preocuparam-se, enervaram-se e exaltaram-se muito. Num corropio, também se levantaram e, solícitos, correram, devagar (para não perturbarem o exame), a salvar aquelas duas provas e a sua-deles honra de professores vigilantes, aplicados, atentos e confiáveis.

Carlos baixou-se.
Segredou aos cabelos uma qualquer fórmula resolvente sobre a física dos corpos.
Ela levantou-se e beijou-o.


Foi chamado o secretariado de exames, os dois foram acompanhados à Direcção, foi levantado um auto e comunicado por escrito à Coordenação Distrital de Exames, tudo acompanhado por um relatório exaustivo sobre todas as irregularidades cometidas e ressalvando a prontidão de reacção dos professores vigilantes. Carlos e Ana foram compelidos a assinar uma declaração onde reconheciam ter-se levantado, aproximado um do outro e beijado em plena sala de exame de Física e Química.
As provas foram-lhes, obviamente, anuladas.


Na semana seguinte a escola recebia um ofício do Júri Nacional de Exames determinando que os alunos em causa não precisariam de repetir o exame por terem acabado de resolver – e eles só – o enigma da atracção dos corpos celestes.

José Paulo Vasconcelos
Tomar – Sala D1
15/07/2010

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Luísa

"Verdes são os campos" - Uxia

Olá!

Estava há muito tempo para lhe responder.

Quis responder-lhe apenas quando tivesse o tempo e atenção que a Luísa me merece.
Quis responder-lhe quando se tornasse óbvio que a minha resposta não seria apenas uma resposta de circunstância e de etiqueta.
Quis responder-lhe quando encontrasse as palavras certas, as palavras que mais se aproximem daquilo que gostaria de lhe dizer.

Reparei hoje que (na ânsia da honestidade e da verdade para as minhas palavras) não lhe tinha dado nenhuma resposta! Deixei-me, pois, da utopia do texto exacto e vou arriscar a imprecisão e a falibilidade da emoção.

Às vezes (raramente) temos a sorte de encontrar pessoas como a Luísa. E quando nos cruzamos com essas pessoas, confrontamo-nos com a nossa mediocridade, experimentamos a nossa banalidade e vemos, de relance, aquilo que gostaríamos de ser.

Já houve tempos em que – qual adolescente inseguro – desejei conhecer e privar com pessoas “famosas”, “conhecidas”, “notáveis”. Desejei poder dizer, com aquela vaidade oca: «Eu conheço-o. Eu já falei com ela. Foi meu professor. Fulana? Ah! Converso muitas vezes com ela… Costumamos trocar e-mails» e gabar-me ostentosamente, não do que sou, mas daqueles a quem conhecia. Felizmente passou-me…
Hoje, olho para alguns “famosos” e percebo que a fama é, frequentemente, fruto de circunstâncias favoráveis, muito mais do que méritos próprios ou virtudes admiráveis.
Hoje, olho para alguns desses “conhecidos” e reconheço (com um sorriso quase trocista) que tenho a sorte, que tenho esse inefável privilégio de ter entre as pessoas que se cruzaram comigo (que olharam para mim, que sabem o meu nome, que já alguma vez se riram ou se irritaram comigo) gente incomparavelmente maior, gente indiscutivelmente melhor, gente verdadeiramente notável.

A Luísa é um desses privilégios!
É com orgulho, ufano, que eu me digo a mim mesmo: «Conheci-a e trabalhei com ela. Houve até ocasiões em que ela veio ter comigo». E esta vaidade enorme, esta promoção pessoal permanece como uma “medalha” para mim.
Não é uma dessas vaidades para dizer ou para publicar… Mas é uma dessas satisfações que nos acompanham nos silêncios da vida.

Creia - creia, porque nada há que justificasse a adulação falsa -, creia: foi um prazer, foi um privilégio, foi uma honra ter trabalhado consigo.
A delicadeza, a honestidade, a sinceridade, o rigor, o profissionalismo, a elegância da sua inteligência, a simplicidade da sua humanidade são referências para mim.

Não chego a lamentar a sua “reforma”, porque a estimo tanto, a considero tanto que sei que, mais do que ninguém, merece tudo o que a vida tem de bom para nos dar.
E confesso-lhe mais: a escola já não a merecia. Ainda bem que pôde sair. Tenho a certeza que encontrará os sítios e as pessoas merecedoras do seu sorriso e dos seus abraços.
Junto daqueles que são verdadeiramente importantes. Junto dos seus. No regaço quente de uma família que criou e que quer e merece desfrutar, finalmente, da Luísa.

Do fundo do coração: seja feliz! Muito…


José Paulo Vasconcelos
Tomar, 2010