sábado, 8 de outubro de 2011

O Eumarquiapala

"Nos Desenho Animados" - Azeitonas


Lembro-me do calor.
Lembro-me da luz branca e dura.
Lembro-me do cheiro lenhoso das azinheiras e das amendoeiras, misturado com o odor doce e quase agreste do alecrim, dos coentros e da segurelha.
Lembro-me do som agudo, afiado, repetido incessantemente por cigarras que nunca se deixaram ver mas que estavam sempre em todo o lado e lembro-me do canto de pardais, pintassilgos, felosas, cartaxos e verdilhões. E dum burro que zurrava do outro lado da aldeia à hora exacta da sua fome.
Lembro-me do sabor do arroz doce da tia Amada, feito com ovos e coberto de canela, e dos bifes de vaca fritos em azeite e banha num prato de barro vidrado.
E lembro-me do calor outra vez. Um calor seco, feito de farpas que se enterravam na pele e me picavam nos braços e na cara. Um calor que marcava a viagem e a estadia. Um calor único, feito de cheiros, luz, cigarras e agulhas.

Quando vinha para as Moreiras, vinha para outra terra.
Não havia engano, nem confusão. As minhas férias grandes não foram marcadas pela praia, nem pelo mar, nem por passeios ao estrangeiro. As minhas férias grandes eram as Moreiras.

E foi aqui, nesta aldeia onde a electricidade tinha chegado há pouco tempo, onde não havia água canalizada nem saneamento, onde as casas, as camas, as roupas tinham cheiro a madeira, que eu descobri, entre a incredulidade e o maravilhoso, que ali, todos eram primos. E como não bastasse esta familiaridade generalizada de toda uma aldeia (eu vinha de uma vila onde havia muitas famílias diferentes!) percebi logo a seguir que todos se achavam meus primos e me consideravam primo de todos eles. Era os primos Leais, o Luís, o Albertino e o António (e que afirmavam frequentemente que eram Vasconcelos, para absoluta incompreensão minha: se eram “Vasconcelos”, porque é que chamavam “Leais”?!), a prima Vitória que costumava vir comer um prato de sopa à porta de tia Amada (e que sempre me pareceu muito mais uma avó do que uma prima!), o primo Pólvora, o primo Bacalhau, a prima Júlia, a prima Leonor (que obviamente, considerando as estaturas, não podia ser minha prima!), o professor Rosa que era casado com a prima Maria das Dores, muito prima minha, a prima Tininha (a única que eu achava bem que fosse minha prima) e mais uns duzentos ou trezentos primos que circulavam na aldeia, de quem eu nunca soube o nome, morada ou profissão, mas que me atiravam com um inequívoco sorriso orgulhoso: “Oh, primo!”.
E depois havia uns primos que nos estimavam muito, que eram muito nossos amigos e que nos consideravam e me faziam sentir “um primo muito especial”. Os “da Fonte”. Havia a prima Céu, o primo “Pena”, a prima “Céuzinha” e o primo João José, da minha idade. E as primas Carolina e Rosita. De todos os primos e primas que tive, estas eram aquelas a quem os olhos mais brilhavam quando nos chamavam “primos”. Lembro-me da prima Carolina, que sempre nos fazia apostar sobre o momento em que o capachinho louro caiaria daquela cabeça oscilante, como um metrónomo, e que tentava tapar a tinta que desenhava na pele brilhante e esticada do escalpe o feitio de cabelos que eu nunca vi.
E havia a prima Rosita!
Não me lembro de outro sorriso tão franco e tão sincero como aquele que lhe inundou a cara quando nos viu sem o esperar.
Estávamos a chegar às Moreiras. Não sei quem éramos. Umas vezes, o “nós” era eu o meu pai e a minha mãe. Outras vezes o “nós” era eu, a minha irmã e os meus sobrinhos. Já não sei quem éramos nós, mas sei que quando o carro parou na ligeira ladeira que separa a casa da tia Amada da escola, vi a prima Rosita escondida por trás de um enorme molho de verdes que ela tirara da capela. Não sei se pela alegria de nos ver, se pela vergonha de ser apanhada “descomposta”, atirou instantaneamente todo aquele aglomerado de folhas para o chão. Os caules que lhe teriam dado tanto trabalho a ordenar de forma a que lhe coubessem num só abraço, aquelas folhas verdes ou secas que tinham sido apanhados à custa dos rins cansados de tanto se dobrar, foram projectados, disparados violentamente em direcção ao chão de pedras para que as mãos, o colo e os beijos pudessem receber condignamente os primos – nós! – que chegavam do Norte.

Era assim que as Moreiras me recebiam… sem outros empecilhos e com todo o tempo e disponibilidade do mundo.
Quando estávamos nas Moreiras não havia “coisas para fazer”. Havia apenas tempo.
Tempo para passear, para sonhar, para jogar e levar a imaginação a sítios onde nunca tinha estado antes.
E as Moreiras rimaram sempre com Brincadeiras!
Quantas vezes, eu, o Marco e a Paula, descobrimos grutas cheias de tesouros, ladrões e bichos maus naquelas covas que ficavam na encosta abaixo da capela. E cada gruta era uma aventura… por aquilo que ela não tinha, mas sobretudo por aquilo que nós lhe colocávamos dentro sempre que as visitávamos. E em cada escorregadela no saibro solto, lá nos amparávamos com os joelhos ou as palmas das mãos, preferindo aplainar a pele e os ossos a sujar os calções. E que interessava isso? Havia sempre “pintura” e água oxigenada em casa da tia Amada.
E quando éramos Tarzan?! Ah, cada um à sua vez, mas os três experimentámos essa sensação única de nos balouçarmos nas longas “lianas” que pendiam das “árvores do Tarzan”; muito tempo antes de sabermos que aquelas nossas árvores da selva tinham afinal o nome que dera o nome à aldeia.
E houve outras histórias, como aquelas bicicletas que me permitiam, a mim e ao Marco, loucas, desvairadas, incontroláveis “corridas”. Nesses anos, outros corriam de mota. Nós corríamos de bicicleta, livres, soltos, como nortadas que nunca havia nas Moreiras.
Uma vez, descia eu pela vertiginosa rampa que mergulhava da casa da D. Amélia, para o poço do casal. O Marco rompia da esquerda, desenfreado, vindo da casa do padre Zé.
Agora parece-me óbvio que aquelas rotas haviam de chocar-se porque os nossos trajectos se cruzavam em planos nivelados. Na altura, o silvo do vento nos ouvidos não nos deixava desviar o olhar daqueles cinco metros que fugiam à nossa frente e por isso não havia como prever o enlace apertado das nossas rodas dianteiras.
O inevitável aconteceu. Não interessa já saber como foi. Vejo ainda a cor vermelha que escorria dos joelhos a ser lavada por fios de água salgada que nos saltavam dos olhos. E recordo-me ainda de como me doía o medo de ter estragado as bicicletas. A pele tinha arranjo! Mas, e as bicicletas? Ter-se-iam partido?...
Lembro-me de ficar nas Moreiras, picado pelo calor, à espera…
A Dulce levou as bicicletas já não sei onde, talvez a Paialvo, a uma velha oficina de tractores, motas, bicicletas e outras coisas que não funcionassem. Tinha levado as rodas gingadas, onduladas pelo encontro imprevisto de um tio e um sobrinho na terra onde todos deviam ser primos. Seria castigo?
E eu à espera…
Nunca mais andei naquela bicicleta branca de guiador caprino. O “mecânico” de tractores, motas, bicicletas e outras coisas que não funcionassem havia declarado à minha irmã que aquelas rodas pareciam “embruxadas”. Quando esticava um raio, os outros entortavam. Quando alinhava o aro, o eixo desalinhava e era, portanto, impossível para ele, mecânico experimentado e de provas dadas em muitas outras coisas que não funcionavam, arranjar aquelas rodas que tinham vindo da América e que eram diferentes de todas as outras rodas avariadas.
E assim, ficámos sem bicicletas. Não me lembro já da pele limada; mas nunca mais esqueci as rodas empenadas!
Felizmente, ainda tínhamos as grutas, as árvores do Tarzan e as Moreiras!

E era sempre possível encontrar algumas brincadeiras, lá nas Moreiras.
Uma vez, já depois das bicicletas de rodas elásticas, passámos um dia inteiro a pregar partidas uns aos outros.
Camas “à espanhola”, sustos, escondidas, mentiras, almofadas, mantas, e muitas outras maneiras de nos fazermos rir uns com os outros, num sítio onde nada mais havia para fazer do que brincarmos juntos.
Lembro-me da minha vitória!
Às escondidas, fui ao quarto da tia Amada – o quarto onde iria dormir a Paula – e preparei-lhe a última partida do dia. Havia naquele quarto minúsculo, um telefone grande, preto, em baquelite luzidia, com um marcador giratório em plástico transparente, do tempo em que as zonas tinham indicativos (049; 034) e cada número só tinha 5 dígitos (46180; 90558). Esse telefone tinha no seu interior, uma generosa campânula metálica, que quando era batida violentamente pelo martelo, se transformava numa campainha generosa, forte, potente que se ouvia por toda a casa (mesmo que o telefone estivesse confinado ao pequeno quarto da tia Amada). Ora… se a Paula ia dormir de cabeça junto ao telefone e eu precisava de lhe pregar uma partida… há que fazer o telefone tocar quando ela estivesse a dormir. Telefonei para o “serviço de despertar” e pedi para ser acordado às 4 da manhã (ou a uma hora parecida…) perguntei ainda se podia pedir um segundo serviço para as 4 e meia, porque tinha medo de adormecer. Que não, cada serviço implicava um telefonema e que tinha que telefonar outra vez. Muito obrigado, telefono já a seguir. Está? Queria que me acordasse às 4 e meia, por favor. Sim senhor, pode confirmar o número? Claro… vou telefonar a certificar-me… muito obrigado. E pronto, estava feito!...
Nessa noite custei a adormecer.
No dia seguinte a Paula, com o seu sorriso de gaiata loura e descalça, confessou que o que mais lhe custara foi ter-se visto obrigada a agradecer a quem a acordou sucessivamente durante a noite. E narrava: O telefone tocava, eu atendia e ouvia: “Bom dia. Serviço de despertar! Está acordada?” e respondia a sorrir para não ser malcriada: “Bom dia! Estou acordada sim. Muito obrigada!”.

Não havia grupinhos e as relações familiares de tio e sobrinhos diluíam-se numa fraternidade inata ou confundiam-se na normal relação de primos. Não sei se éramos amigos, irmãos ou primos. Sei que éramos um naquela aldeia.
Eu, o Marco e Paula.
Euomarcoepaula…
Eumarquiapala
E esta frase, de tão repetida, transformou-se aos poucos, nas Moreiras, num nome próprio, único, designativo de uma realidade una e absolutamente clara para mim. Os três, fomos, durante alguns anos, o “Eumarquiapala”.

José Paulo Vasconcelos
Maio de 2008

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